A Sociedade da Neve

A Sociedade da Neve

26 de abril de 2024 0 Por ace

A Tragédia dos Andes, acontecida em 1972, é uma história que já foi recontada muitas vezes. Eu a conheci quando tinha cerca de 12 ou 13 anos, ao ler o livro Os Sobreviventes, de Piers Paul Read, no qual é narrada a trajetória do time de rugby uruguaio Old Christians Club, cujo avião cai na Cordilheira dos Andes e os sobreviventes da queda tentam permanecer vivos em condições extremas. Dos 45 passageiros, somente 16 foram resgatados com vida após 71 dias. Recentemente estreou na Netflix uma produção que traz uma nova perspectiva sobre essa história, baseada no livro de Pablo Vierci, e está concorrendo ao Oscar de melhor filme internacional: A Sociedade da Neve. Vamos conhecer?

Devido à notoridade da história dos sobreviventes dos Andes, acredito que não preciso discorrer muito sobre o tema do filme: de forma resumida, ele conta toda a trajetória dos tripulantes do momento em que têm a oportunidade de ir ao Chile até o momento de seu resgate – e todos percalços entre esses dois pontos fatídicos. Na queda, muitos tripulantes morreram, e quem sobreviveu precisou lutar contra a fome e o frio extremo, até o ponto em que não havia mais nenhuma fonte de alimento a qual recorrer que não fossem os corpos de quem havia falecido. Esse é um dos aspectos mais tristes e desconfortáveis da história, mas foi também o pacto que permitiu com que todos pudessem viver. Contudo, a maneira como A Sociedade da Neve trata de sobrevivência é sublime, transformando esse filme em uma história sobre companheirismo e fé.

Diferente de outras adaptações dessa tragédia, que exploram a antropofagia com um viés sensacionalista pra atrair mais público e explorar uma vivência muito dolorosa pela qual os sobreviventes passaram, A Sociedade da Neve enfatiza todas as maneiras pelas quais o grupo se articula para vencer cada dia. As lideranças que atuam de diferentes formas, as presenças tranquilizadoras que são fundamentais para manter a estabilidade, os momentos de leveza emocional em meio ao caos e também a coragem pra fazer o que ninguém mais deseja fazer – como, por exemplo, aqueles que assumem a tarefa de cortar a carne dos mortos. Todos esses papéis ganham destaque ao longo da trama, mostrando ao espectador todas as dificuldades que o grupo enfrenta e também as formas que eles encontram de suportarem esses terrores: juntos.

Outro aspecto fundamental que é trabalhado pelo roteiro é a importância da fé. Mas não unicamente a fé cristã, que sim, era bastante importante para o grupo. O filme é muito conduzido pelo olhar de Numa, uma das últimas pessoas a aceitar se alimentar de carne humana, e cujos valores estavam fortemente atrelados a sua moral religiosa. Porém, o longa também evidencia como a fé pode ser ampla e desassociada de religiões ou entidades: em um diálogo poderoso e emocionante, que me levou às lágrimas, Arturo Nogueira diz que a fé dele está depositada nos companheiros que cuidam de suas feridas, nos que saem para caminhar em busca de salvação para o grupo, nos que partem a carne sem dizer a quem pertenceu. Essa fé que eles tinham uns nos outros (e a sensibilidade do filme para mostrar  esse companheirismo) foi fundamental para a sobrevivência do grupo.

Em termos técnicos, A Sociedade da Neve é impecável. O elenco é excelente, entregando atuações intensas e mostrando transformações físicas que revelam todas as provações vividas na montanha. O roteiro é angustiante e, mesmo contando uma história que muitos já sabem como se desenrolou, consegue trazer plot twists pra quem não lembra exatamente o nome de cada pessoa que sobreviveu, como era o meu caso. A fotografia é de cair o queixo, com um visual impressionante que mostra toda a beleza e a imponência dos Andes, causando ao mesmo tempo a sensação de admiração e desolação. É um filme que impacta do início ao fim.

A minha dica é: não percam tempo e assistam A Sociedade da Neve. Diferente dos filmes que vieram antes, essa adaptação não tem um viés predatório, desejando explorar a história dos sobreviventes para ganhar audiência, mas sim contar as transformações psicológicas que um grupo cheio de sonhos e esperanças passou ao viver uma experiência traumática e inexplicável, para a qual ninguém poderia estar preparado. Deem o play, vale a pena.